O preço das passagens

Sem disponibilizar os bilhões que estão em Fundos, governo idealiza reduzir preços das passagens aéreas. Mas e os operadores?

Reza uma história que durante a Copa do Mundo de 1958, o técnico da seleção brasileira, Vicente Feola, reuniu seu time para passar algumas instruções antes do jogo com a equipe da extinta União Soviética. O plano era perfeito e a tática parecia infalível, até que o imortal Garrincha (nosso “Deus das pernas tortas”), indagou o treinador: “Tudo bem seu Feola, mas o senhor já combinou com os russos?”. O Brasil venceria o jogo e de quebra ganhou um jargão, que significa algo muito simples: combinou com todo mundo? Hoje a célebre frase atribuída a um dos maiores ídolos do nosso futebol tem aplicações quase que diárias, especialmente quando se trata de políticas públicas, resumindo-se na importância de envolver todas as partes, para que um acordo funcione.

Nos últimos anos, entre otimismos, recessões e pandemia, a aviação civil brasileira ainda procura uma proa que assegure seu crescimento, o que tem se demonstrado cada vez mais difícil, o que é factível eis dos inúmeros prejuízos acumulados pelo setor (50 bilhões de reais entre 2012 e 2022).

Assim, novas saídas sempre foram prometidas ao setor e à população. Mas como está a relação de uma eventual contrapartida, com aqueles que fazem o jogo acontecer: as companhias aéreas?

Democratização do transporte aéreo.

Quem poderia estar mais interessada em ver suas aeronaves repletas de passageiros, com seus porões repletos de cargas e com a renovação constante de sua frota (que assim será mais eficiente e econômica), do que as próprias empresas de linhas aéreas? Sim, isso é possível, especialmente em um país com dimensões continentais, com uma fraca infraestrutura de estradas de rodagens e férreas (principalmente em sua Região Norte) e com uma população de mais de 200 milhões de habitantes. Aliás, o crescimento da aviação civil tem sido regularmente debatido nos últimos anos e as soluções estão na mesa.

A importância da aviação é estrutural e estratégica, pois além de ser um instrumento vital para a ligação dos rincões distantes aos centros de poder econômico e político, garante a presença em todo o Brasil de brasileiros, que ajudam a legitimar a posse sobre nosso território. Faz circular pessoas e a riqueza, sendo, ademais, um meio ecológico e sustentável de transporte, vez que dois ou três quilômetros de uma pista de pouso, integram uma região da Amazônia ao mundo, em um lugar onde se é impossível de se construir estradas entre os núcleos populacionais.

Logo, trazer mecanismos que busquem reduzir o preço das passagens aéreas, é meritório, mas, e os russos? Portanto, incidindo uma carga tributária sobre o transporte aéreo maior do que os modais terrestres, além de que aquele enfrenta maiores custos em dólar e com um combustível que representa 40% de sua pauta de despesas, o que tem sido agravado com a flagrante judicialização contra as empresas aéreas (tem-se aí algumas fontes), dificultam a democratização do acesso ao transporte aéreo. Tudo isso tem enorme impacto, mas o convite que é preciso ser feitos a todos é no sentido de tentar entender por que o Governo Federal, sentado sobre bilhões de reais que pertencem ao segmento aéreo, não os coloca na mesa para auxiliar o próprio setor.

Considerável quantia.

Todos os meses, em argumentando, as empresas do setor (companhias aéreas, escolas e oficinas de manutenção, táxis aéreos, indústria aeronáutica etc.) são obrigadas a depositar 2,5% do valor da folha de pagamento em favor do Fundo Aeroviário. O sistema foi criado em 1967, mas, ano após ano, a receita deste fundo é bem maior do que se reverte a título de investimento para o próprio setor. Para se ter uma ideia, somente em 2023 as empresas de ground handling (ESATAs), essenciais para o funcionamento dos aeroportos e das empresas áreas, recolheram para este fundo 25 milhões de reais, valor que poderia ser utilizado em capacitação de mão de obra, em programas de certificação para o setor, mas fica retido, causando em aumento de custo final do bilhete aéreo. Vale uma reflexão se não seria o momento de cancelar essa rubrica que vem a repercutir no preço final do bilhete aéreo, visto que sua finalidade de origem está sendo suprida pela iniciativa privada.

Outro montante que pertence à indústria do transporte aéreo, mas é usado para superávit fiscal é o valor que sai das outorgas das concessões aeroportuárias. São outros bilhões de reais que poderiam ser usados para ajudar a reduzir o custo elevado do transporte aéreo. Trata-se do FNAC – Fundo Nacional de Aviação Civil – que surgiu em 2011 juntamente com a criação da Secretaria Nacional de Aviação Civil – SAC. Este fundo é uma forma de garantia de investimentos no setor, já que seus recursos só podem ser destinados à aviação brasileira.

Espécie de fundo contábil – e não financeiro – seus recursos são, na sua maioria, provenientes de receita de outorga recolhida dos concessionários de aeroportos. Entretanto, entra ano e sai ano, a receita deste fundo também é bem maior do que os investimentos no setor. Para se ter uma ideia, sem considerar a correção monetária e o rendimento de aplicação financeira (Recursos Próprios Financeiros), nos últimos 10 anos, a receita do FNAC foi de R$43,697 bilhões.

Só em 2023, segundo o Portal da Transparência, o FNAC arrecadou R$ 4,05 bilhões e executou R$ 257,29 milhões. A SAC estava executando em média R$300 milhões por ano na última década, isto é, na ordem de 7%. Grande parte deste montante poderia e deveria ser revertido em benefício da própria aviação civil, conforme previsão legal quando de sua criação, podendo tanto se dar na forma da ampliação e da criação de infraestruturas ou mesmo, a partir de financiamentos. Não o fazendo, passa a ser um “imposto”, portanto, à custa do usuário do transporte aéreo, quer seja passageiro ou expedidor de carga.

Múltiplas formas de uso.

Fora todos estes recursos que poderiam estar sendo utilizados em benefício do setor aéreo, não se pode pensar em redução do custo do bilhete aéreo sem olhar para algumas variantes que impactam diretamente este valor: preço do combustível de aviação e a variação do dólar. Com pequenas margens de interferências na esfera nacional, como por exemplo o custo de ICMS e a tecnicidade do preço do querosene de aviação, tanto um como outro fator também atingem as operações aéreas em outros países, além de que esses tópicos sempre estão em destaque nas discussões de precificação do transporte aéreo aqui no Brasil, razão pela qual preferimos desbravar outros fatores que, somados, figuram tal qual importantes para minimizar o custo da passagem aérea e que são arrastos especificamente brasileiros.

Enquanto no Brasil o preço dos combustíveis impacta 41% dos custos operacionais das linhas aéreas (dados IBA), mesmo com a escalada mundial do valor dos carburantes, a média mundial gira em torno de 31%, segundo a IATA (Associação Internacional de Transportes Aéreos). E tal fator acontece especialmente devido à formulação da precificação para a internalização dos derivados de petróleo no Brasil (praticada pela PETROBRÁS), que segundo a Subcomissão de Aviação Civil do Senado Federal (CISTAC/2012), chega a representar até 72% do preço final ao consumidor. 

Somado a tanto, não se deve deixar de lado o grave problema da judicialização excessiva do transporte aéreo. Segundo a IATA, tem-se no Brasil uma ação judicial a cada 227 passageiros transportados e nos Estados Unidos a relação é de uma ação a cada 1.254.561 passageiros transportados. Portanto, as companhias aéreas internacionais ou domésticas, ao operar no Brasil, têm lidado com o crescente número de processos por situações que muitas vezes não são responsáveis (eis da chamada responsabilidade objetiva inerente ao entendimento exarado pelo Código de Defesa do Consumidor), provocando elevação de custos. Há que se tratar este assunto com seriedade, pois temos visto o desinteresse de empresas estrangeiras pelo mercado brasileiro, quando compara os custos deste quesito vivenciados em outros países.

O tema da judicialização não pode ser ultrapassado focando apenas o Poder Judiciário: é matéria multidisciplinar. Temos aqui a necessidade de uma intensa atividade educativa, num trabalho conjunto das entidades públicas e privadas. O Congresso não pode se furtar em olhar o problema na busca da adequação de nossa legislação ao que está prescrito nas normas internacionais, que observam as peculiaridades específicas do transporte aéreo.

A ANAC, ainda que tenha tentado estabelecer o direito de reparação em casos nos quais se constataria eventual falta de assistência material aos consumidores/passageiros, é necessário enfrentar com mais propriedade esse percalço e adaptar à atual realidade a Resolução 400/2016, que dispõe sobre as Condições Gerais de Transporte Aéreo, ao contexto internacional, determinando a ausência da responsabilidade da empresa aérea em indenizar extraordinariamente seus usuários, no caso dos atrasos ou cancelamento dos voos decorridos de condições meteorológicas, vez que se trata de uma situação excepcional e de força maior (eventos e/ou condições de ordens naturais).

Importante destacar que no Brasil, a companhia aérea deve seguir as regras da ANAC, devendo compensar o transtorno dos passageiros, oferecendo hospedagem, transporte terrestre, comunicação e alimentação, além de reembolso, se for o caso. Em muitos países, problemas que fogem do controle do operador aéreo como os advindos do sistema de tráfego aéreo ou mal tempo, não são arcados pela companhia.

Outro forte indício de que o Governo e o Congresso não ajudam a viabilizar o transporte aéreo no país foi a recente reforma tributária: o Texto estabelece previsão de regimes específicos de tributação para “serviços de transporte coletivo de passageiros rodoviário, ferroviário e hidroviário, de caráter urbano, semiurbano, metropolitano, intermunicipal e interestadual”. E o transporte aéreo coletivo de passageiro ficou de fora. Segundo a Abear, pode gerar um aumento de 270% na carga tributária do setor.

Setor Privado.

Entidades privadas também são causadoras do aumento do custo no Brasil. Como exemplo, em 2023 o nosso maior aeroporto, Guarulhos, vivenciou uma situação peculiar de atraso na emissão de credenciais de trabalhadores para o acesso à área restrita. Em cálculo atualizado este atraso inusitado causou custo adicional de R$2,5 milhões de reais por mês. A confirmar, este “defeito” pode estar ocorrendo em outros sítios aeroportuários.

As administrações aeroportuárias vêm exigindo das empresas de ground handling (ESATAs) apólice de seguro específico para as áreas privadas edificadas do aeroporto, sendo que, algumas das coberturas exigidas já são atendidas no seguro de “responsabilidade civil operações”, seguro este, obrigatório para operar dentro dos aeroportos do país. Outras coberturas exigidas já são amparadas pelo seguro do próprio aeroporto no que diz respeito à estrutura, através da apólice empresarial. Há que se eliminar também este custo adicional e desnecessário.

Na mesma toada, o valor das cessões de áreas operacionais (essenciais) dentro dos aeroportos concessionados vem subindo consideravelmente para todos os elos da aviação, cujos custos necessariamente são repassados aos passageiros. Aqui também vale uma reflexão: o controle do valor das outorgas poderia reverberar em valores menores nos aluguéis das áreas operacionais.

Promessas.

O governo, por meio do Ministério de Portos e Aeroportos, tem anunciado desde o começo do ano, a criação de um fundo para financiar as empresas aéreas que operam no Brasil, cujos recursos, serão da ordem de 4 a 6 de bilhões de reais. A proposta estaria sendo articulada junto ao BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social), e seus efeitos teriam caráter permanente.

Tanto, em se concretizando, seria um alento às empresas. Enfim, seria um dinheiro retornando para sua origem.

No entanto, segundo as notícias dos últimos dias, o governo estaria discutindo qual será o fundo garantidor e qual o volume de crédito que será disponibilizado para as empresas aéreas, com as tratativas do assunto estando em andamento junto com o Ministério da Fazenda, Casa Civil e de Portos e Aeroportos, pois para a utilização do FNAC, seriam necessárias algumas alterações legislativas.  Entre idas e vindas, é possível que este não seja um caminho a ser trilhado.

Enquanto isso.

Ante o cenário que permeia o setor aéreo, cujas notícias tratam principalmente quanto a viabilidade econômica de suas principais empresas, se observa que, tanto o setor privado, como o público, possui diversas fórmulas que podem ser aplicadas a favor da aviação e da indústria que a envolve, que é, entre outros, extremamente dependente do cenário externo, como do interno, com o dólar envolvendo até 60% dos seus custos.

É um tema complexo e que precisa incluir não apenas as linhas aéreas regulares – domésticas e internacionais quando em operação no Brasil), mas também os operadores de táxis aéreos, operadores privados, oficinas e escolas de aviação, as empresas de apoio de solo (ESATAs), aeroportos e uma série de players que, juntos, fazem funcionar o sistema de aviação civil. Quanto ao combustível, é importante lembrar que existe a gasolina de aviação além do querosene, sendo aquela essencial para o atendimento dos locais mais isolados, onde não se operam aeronaves de maiores portes.

 Em suma, trata-se da necessidade de empenho de todos nós no auxílio à viabilidade do transporte aéreo no país. Todas as possibilidades passam pela eficiência e união de esforços dos setores público e privado. Resta-nos saber quem poderá liderar a solução desse imbróglio.

Por *Ricardo Aparecido Miguel

Diretor-presidente da Abesata (Associação Brasileira das Empresas de Serviços Auxiliares de Transporte Aéreo)

– Mestre em transporte aéreo e aeroportos, Bacharel em Ciências Aeronáuticas, Bacharel em Ciências Jurídicas, Professor de Direito Aeroespacial, Piloto de Linha Aérea, Especialista em investigação de acidentes aeronáuticos, membro titular do Conselho Consultivo da ANAC, diretor da Seção do Transporte Aéreo da CNT e Diretor-presidente da ABESATA.

(*Texto publicado originalmente na revista Aero Magazine, edição 359, em abril de 2024.)

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